11 janeiro 2007

Entrevista com Mano Brown
















"Não acredito em líderes, acredito em pessoas"





Por Júlio Maria

Mano Brown chega à sede do projeto social Capão Cidadão, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, às 16h20 de uma sexta-feira de sol. Cumprimenta todos com mão firme, olho no olho e alguns sorrisos. Quem o recebe é Paulo Magrão, vice-presidente do Capão Cidadão. Conversam a sós por alguns minutos e se aproximam do jornalista do Jornal da Tarde.

Paulo Magrão - Brown, esse aqui é o Júlio, repórter do Jornal da Tarde.
Mano Brown - É, já vi o carro da reportagem ali. Eh Magrão, não gosto dessas tocaia aí não, hein.
Paulo Magrão - Não Brown, o cara fez uma matéria bacana sobre o projeto, falou até que funciona como um oásis aqui na periferia.
Brown - Oásis por quê? Quer dizer que tudo o que está em volta é seco?
JT - Aí vocês é que estão distorcendo o que sai no jornal (riso nervoso).
Paulo Magrão - Ele vai estar na conversa com os moradores, beleza?
Brown - Beleza, beleza.
JT- Brown, na verdade, gostaria também de conversar com você depois sobre alguns temas. Pode ser?
Brown - Vou pensar (Brown se vira e vai falar com alguns amigos).

O JT pôde acompanhar com exclusividade a conversa-palestra de Brown com moradores e gente que trabalha no Capão Cidadão. Ao terminar, Mano Brown, finalmente, falou com o JT .

JT- Há quase 20 anos os Racionais falam sobre segregação, racismo, os dilemas da periferia. Acredita que este discurso mudou algo?
Mano Brown - Os Racionais são só uma célula entre milhões de células. Não acredito em líderes, só acredito em pessoas. Uma comunidade unida vai fazer muito mais do que o Paulo Magrão (líder comunitário do Capão Redondo) sozinho ou do que qualquer pessoa bem-intencionada. O que o rap fez foi levar para as pessoas dessas comunidades a idéia de que elas têm de se unir nos piores momentos, nos momentos de dor, de perda, de insegurança. O problema é que, para muitas, morar aqui é um trânsito, não vão ficar aqui para sempre. Para as que vão ficar, seria importante que o bairro melhorasse, que seus filhos crescessem em um lugar melhor. É impossível medir se algo mudou por causa dos Racionais.

A gente percebe seu desconforto ao ser colocado como líder, mas muitas vezes o próprio movimento rap tenta colocá-lo assim. Esta situação é angustiante para você?
Sempre pensei que cada um é seu líder. Às vezes, é desconfortável mesmo você ver que as pessoas estão esperando uma atitude sua para ver o que vai acontecer. Eu acho que posso servir como espelho, mas é cada pessoa que tem de ser sua própria liderança. No momento crucial, Mano Brown não vai estar lá. Na hora em que você for deitar com uma mulher, vai ter que usar camisinha e o Mano Brown não vai estar lá. É você quem sabe o que vai fazer. É você quem vai colocar uma arma na cintura e ir para o asfalto atrás de uma 'fita' (roubo), e o Brown não vai estar lá (para impedir). Não siga o Brown, siga o seu coração. Se o Brown for firmeza, siga as idéias dele, mas não siga ele. Mesmo porque o ser humano Brown vai errar, com certeza vai errar. Ainda que tente evitar, esta liderança parece fugir ao seu controle. Sempre achei a cadeira do presidente o lugar mais solitário que pode existir. Quando o cara chega lá em cima, ele é um solitário, é um alvo. Com certeza os que estão ao lado, mesmo estando juntos, estão lutando por benefícios pessoais. Eu vejo o Lula. O Lula poderia fazer muito mais fora do governo do que dentro, ele poderia ser muito mais útil estando fora da cadeira de presidente do que sendo uma figura de enfeite, manipulado para cá, para lá, os amigos roubam e ele não pode falar nada, o amigo dá mancada e ele não pode falar nada porque ele está de ilustração. Se o cara mandasse mesmo, diria logo 'sai todo mundo', 'são todos safados', 'fica você, você não é safado'. Se saísse (da Presidência) ele iria tomar a pinga mesmo dele, iria assumir a personalidade dele. 'Bebo pinga mesmo, sou brasileiro, gosto, sou honesto'. Mas não, o pessoal fica tentando fazer do Lula o rei da Inglaterra e ele não é. As pessoas questionam que ele fala errado, que ele bebe, tá ligado? Se fosse da periferia, seria um rei com as idéias que tem. Como presidente, é questionado.

Não há uma confusão nas mensagens do rap? Muitos jovens entendem que o crime compensa quando ouvem uma música que narra a história de um homem que entrou para o tráfico, ainda que este homem se dê mal no final da música.
Não é só no rap que existe essa contradição. Quando você assiste a um filme de Steven Spielberg, não sabe quem matou mais, se o vilão ou o mocinho. O mocinho mata o filme inteiro. Qualquer filme ou novela que for ver tem relação com a violência. O rap não se relaciona com a violência, ele vive a violência, ele nasce dentro. Ele não relata a vida dos outros, fala da sua própria vida e, às vezes, isso vem cheio de mágoa porque fala de seres humanos. E como você vai narrar uma história de desigualdade social sem raiva, friamente, como o papa? Você nunca sabe se o papa está com raiva ou não porque ele nunca passa o sentimento que tem. O rapper é diferente, tem raiva, tem ódio, ele xinga, cai em contradição, mas por trás dessa contradição existem outras histórias. E a contradição do rap faz muitas pessoas pensarem... As palavras que eu canto me trombam no farol. 'Aí mano, tá de carrão aí? E essa corrente aí? E esse boné novinho aí?' Eu me coloco na posição do cara, sei o que ele está pensando, só que eu sou igual a ele. A diferença é que não sou o playboy que está trancado no carro. Posso descer e trocar uma idéia com ele. 'Sou o Brown, estou há 18 anos falando de pessoas como você. Não sou seu inimigo'.

Os Racionais fizeram há dois meses um show na quadra da escola de samba Tom Maior, em Pinheiros, promovido por alunos da Faculdade Armando Álvares Penteado (Faap) (Brown balança a cabeça em sinal de desaprovação). Isso pode ser um sinal de mudança, de que o grupo não é mais tão radical, de que faz show 'do outro lado da ponte'?
Essa festa não foi feita com a intenção de agradar aos boys, respondendo ao que seria sua pergunta. Foi feita para que os favelados pudessem ir até lá ver o irmão do (rapper) Tupac Shakur (Moprene Shakur), que estava no Brasil. Nós abrimos mão de ganhar para podermos pagar o cachê dele, que era alto. A Faap não era dona de nada, no dia em que a Faap for dona da escola de samba, estamos ferrados. A gente foi lá para cantar. Agora, veja como é que é. As pessoas falam que somos preconceituosos. Saiu no jornal assim: 'Racionais cantam para playboys'. A partir do momento em que o jornalista reconhece que aqueles caras são playboys, então não estamos errados. Os jornalistas perceberam que existe uma elite, que existe um playboy.

Há sempre uma demora grande do grupo em lançar discos. Muito se falou sobre o próximo CD de vocês, sobre um DVD com documentário, mas ninguém sabe quando vai sair.
Vai sair o DVD (com documentário) ainda esse ano e o CD ficou para o ano que vem. Estamos lançado dois grupos agora, um daqui (Capão Redondo) e um outro da zona oeste. Se esse grupo pegar, vai mudar tudo na região em que eles moram. É uma estratégia. Se pegar, vai ser uma revolução.

Por quê?
Eles vão ser o espelho que falta na região deles... A gente vive como espelho. Não tive pai ou irmão mais velho em quem me espelhar, tive dois amigos da rua. Um primo mais velho me ensinou a ouvir Jorge Ben, outro me ensinou a usar roupa tal e um outro me ensinou a chegar de um jeito tal nas mulheres. Se a gente for espelho de nossos filhos e dos menores que vivem com a gente, se conseguirmos ganhar dinheiro honestamente e fazer com que eles percebam isso, vai ser bom.

A estratégia que você diz seria fazer cada região ter um Racionais?
Não, Racionais não, mas o importante é fazer aparecer referências de superação. Se pudesse, ajudaria os caras a se formarem advogados.

Brown, você fez uma declaração no DVD '100% Favela' dizendo como seu próprio preconceito havia atrapalhado sua vida. Quando via um moleque de olhos claros, automaticamente o odiava por saber que ele tinha coisas que você não poderia ter. Quando você reconhece isso quer dizer que está mudando?
O problema é que toda hora estou regredindo e esse ódio volta para mim. Isso é algo que ainda penso e que me maltrata muito. Antigamente, eu não conseguia ver (os preconceitos), eu era cego e sofria menos. Agora, eu vejo melhor e sofro mais.

O que o faz regredir?
Você acha que o cara não tem culpa, mas ele tem sim. Você não tem nada contra a pessoa do cara, mas contra o que ele representa.

É um círculo isso?
É um círculo.

E como sair dele?
Não tem como sair dele.

A qualidade do rap não caiu muito por causa do excesso de grupos?
Tudo que cresce muito atrai gente que só pega carona no movimento, mas que vai se achar lá na frente, gente que está no rap mas que ainda vai ser um bom médico. A primeira missão de muitos foi ser cantor de rap, mas aí ele descobre que não é bom para cantar mas é bom para trocar idéia, para mexer com dinheiro, para fazer compra. Eu já estou vendo uns manos assim, que começaram no rap mas hoje são artistas plásticos. O rap muda a vida dele, mas ele não vira um astro.

Não se dá um valor muito grande para o discurso dos Racionais, para as letras, e se fala pouco de música?
Sim, eu acho que sim. Quer que eu fale? O pessoal da periferia só gosta dos Racionais por causa da música, não por causa da mensagem. Não vou dizer que nossa música seja boa, mas se fosse ruim nada do que eu falo iriam querer ouvir.

Quando se pergunta para essas crianças daqui o que é 'Mágico de Oz', elas dizem que é uma música dos Racionais. Não têm mais as referências da infância...
Elas ficam adultas muito rápido, mas isso não somos nós que trazemos, elas vivem e pegam isso na rua. Estão perdendo a infância.

Brown, você nunca quer saber de aparecer na mídia, de dar entrevistas, de difundir suas idéias na imprensa. Por que isso?
A gente tem de fazer mais e falar menos. Não dá para ficar aparecendo desnecessariamente, aparecendo em vão. Isso impede o progresso de uma quebrada. Dá para fazer muito mais estando no submundo.

Sampleado da:

  • Radiola Urbana


  • *Entrevista publicada originalmente pelo Jornal da Tarde



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